Longevidade é meu trabalho. Estudo e leio muito o que escrevem sobre esse tema. Estou em um número considerável de grupos de discussão. Conheço a maioria das pessoas que tem relevância nesse assunto. Meu nível de informação é dos mais elevados. Sou um especialista em longevidade, o que faz com que meu lado racional esteja bastante alerta.
A se considerar os dados frios, estamos todos ficando mais velhos, individual e coletivamente. A idade média da sociedade vem aumentando. A quantidade de crianças que nascem diminui continuamente. No outro lado do espectro, a quantidade de pessoas vivendo até os 80, 90 ou mais anos só faz aumentar.
Todo mundo quer envelhecer feliz, fazendo aquilo que sempre fez na vida e sem sentir a idade: trabalhando e prosperando, comendo e bebendo de tudo, amando e sendo amado, curtindo sexo, viajando, experimentando coisas novas, estudando, tendo filhos, malhando, participando da sociedade e por ai vai.
Mas há um lado da história menos debatido: as pessoas de fato desejam viver cada vez mais?
Sejamos honestos: viver muito enche o saco. O nosso e o dos outros. O dos outros é fácil de entender. Hoje há quatro gerações convivendo na sociedade. Um rapaz de 11 anos provavelmente tem uma mãe de 35, um avô de 63 e uma bisavó de 85 anos. Se antes já era difícil lidar com o conflito de duas gerações, imagine a convivência de quatro delas. Nada fácil.
O moleque até pode curtir o avozão e a bisa mas vai chegar uma hora, e não demora muito, que ele os verá como dois dinossauros saídos de uma época que ele simplesmente não consegue imaginar. Eu, com 65 anos, não tenho ideia de como era viver em 1945, ao findar da guerra. Agora imagina um sujeito que nasceu em 2012 tendo de imaginar como era a vida da sua mãe em 1988 (não existia internet e os PCs eram poucos), ou do seu avô em 1970 (não havia celular, os carros eram V8 e a gente jogava papel no chão) ou em 1955 (não existia televisão, pré-história total). Ele não tem a menor ideia. Não faz nenhum sentido para ele
O oposto também é verdade. Quanto mais velho você fica, menos a vida faz sentido para você. De um lado, porque ela se repete. Muito do que te revoltava no passado continua por ai. Quando eu nasci existiam carroceiros, crianças pedindo esmola, favelas, muitas casas não tinham esgoto, a desigualdade de renda era brutal, as pessoas não eram respeitadas, havia corrupção, o poder público atendia aos interesses dos grupos que o controlavam e por ai vai. Nada disso mudou. As pessoas que construíram a casa em que eu moro hoje, no inicio dos anos 60, eram praticamente analfabetos. As pessoas que vem hoje aqui fazer consertos na minha casa são igualmente analfabetos. E trabalham igualmente mal. E ganham igualmente mal. Se faziam piadas com negros e gays. Hoje não se fazem piadas por que é reprimido socialmente. Mas o preconceito ainda está aí, como sempre esteve. As nações que estavam em pé de guerra em 1958 continuam em pé de guerra hoje. As ideologias são as mesmas. As ilusões são as mesmas. Os argumentos são os mesmos. Os exploradores são os mesmos. Os espertalhões são os mesmos. Até as leis e a corrupção são as mesmas
Então, viver muito pra que?
Por outro lado, embora dê pra lutar contra isso e tentar melhorar a situação, há um aspecto imutável: as pessoas que referenciaram a sua vida, que definiram o seu mundo e moldaram sua vida estão morrendo
Primeiro, morrem seus ídolos, pessoas de uma geração anterior cuja opinião e exemplo você respeitava. Fossem eles seus pais, artistas, intelectuais, políticos, professores, o que for … eles começam a morrer. Um depois do outro. E chega uma hora que restam bem poucos deles
Depois começam a morrer as pessoas da sua geração. Alguns morrem prematuramente e você se consola pelo fato deles terem sido vítimas de um acidente de trânsito ou de uma doença inesperada. No entanto, outros morrem simplesmente porque a idade chegou. Essas pessoas não são distantes. Não fazem parte do mundo midiático. Não são seres inatingíveis. São pessoas com quem você tem história. Você bebeu com elas, as abraçou, conversou, transou com elas, chorou com elas … e elas morrem
Quanto mais o tempo passa, mais as referências da sua vida vão se esvaindo. Tudo bem, tem os filhos e os netos. São pessoas que você ama mas eles tem a vida deles. Vivem em um mundo diferente do seu, com outros parâmetros e outra visão da vida. Estão preocupados em resolver seus próprios problemas. E tudo o que você não quer é ser um desses problemas. Quanto mais o tempo passa, menos você é parte do tempo atual e mais de um tempo que está desaparecendo
É divertido lembrar das “merdas” que você fez na adolescência e na juventude. Os jovens dão risada. Claro, eles também já dirigiram bêbados e fumaram alguma coisa estranha. Só que eles não vivem a sua vida. Para eles, você é um tiozão que fez merda numa época que eles só veem em videos no Youtube … se é que veem. Para você, compartilhar isso é um esforço para mostrar que você fez algo que te tira da condição de velho e que gera uma conexão com o mundo atual. Claro que você entende que o mundo atual não existiria sem tudo o que a geração antiga fez. A geração atual não vê assim. E a geração antiga vai morrendo. E você vai sobrando. Quanto mais você sobra, menos você significa.
Só faz sentido continuar vivendo se você for produtivo e for visto como produtivo. Produtivo não é entregar um relatório pro seu chefe. Produtivo é ser visto como alguém relevante. A maior parte das pautas atuais existiam quando você nasceu. A discussão sobre os direitos das minorias e políticas de afirmação remontam a 1964. A discussão sobre legalização das drogas vem de 1968. A exigência de respeito às orientações sexuais não heteros vem do início dos anos 70. O feminismo, e todas as suas nuanças, também vem dos anos 60. Nada disso é novo. Nós levantamos todos esses problemas. Mas os jovens acham que essa é uma pauta do século 21 e eles são precursores nesses “movimentos” e você é apenas um saudosista. Que saco … quando vocês nasceram a gente já estava cansado de debater esses temas. Adianta falar? Não. Você é só um tiozão velho, cheio de memórias vazias, enchendo o saco.
Então somos obrigados a aceitar o fato de que minha opinião não interessa a ninguém, o que eu fiz no passado não ajudou em nada a construir o presente, as décadas de experiência e aprendizado são desprezíveis frente às “verdades” indeléveis que existem na mente de todo mundo das gerações Millenials, Z e Alpha.
Em assim sendo, viver muito pra que?
Não é uma pergunta retórica. É uma pergunta real. Você só se sente bem vivendo em um mundo onde há referências. Se todas as suas referências desapareceram, você se torna um peixe fora d´água, alguém fora do contexto, estranho a todos os demais e se sentindo fora naquele espaço
Acredite. Para um senior ter vontade de viver não basta uma casa cheia de tecnologia, um sistema de suporte de vida atuante, um aplicativo que identifica um problema iminente ou uma cidade aging-friendly. O que faz com que ele viva é se identificar com o mundo que o cerca. Se este mundo desaparecer e ele não se entender com o mundo que existe hoje, ele simplesmente perde a vontade de viver, por mais que a medicina lhe garanta décadas a frente.
Think about it