Para a maioria das pessoas, 1968 é um ano do qual elas ouviram falar muitas coisas, principalmente das manifestações de rua em Paris e do AI5 no Brasil. Seu conhecimento vem de leituras e aulas. Aquele ano é considerado pela intelectualidade como um divisor de águas na cultura política, artística e social bem como na quebra de tabus e paradigmas.
Por outro lado, a vida hoje é marcada por uma ampla série de reinvindicações, que vão da aceitação de diversos gêneros sexuais à eliminação do preconceito racial, do reconhecimento dos diretos dos povos ancestrais à dignidade menstrual, da valorização da mulher profissional ao combate à apropriação cultural e o uso linguagens neutras.
Lendo as postagens nas midias sociais, é fácil perceber como as pessoas entre 20 e 40 e poucos anos estão se achando o motor de uma grande revolução no planeta, sempre recriminando os que não estão 100% alinhados com seu pensamento.
Quase ninguém viveu 1968 mas todo mundo vive o dia de hoje. E isso faz uma grande diferença. Viver uma época é totalmente diferente de ler ou ouvir falar dela. A experiência de pele te dá a real dimensão de como as coisas foram. Já a história documentada passou por um filtro. Você está assimilando a visão de outra pessoa, sem poder compará-la com sua própria vivência
Eu tinha 10 anos em 1968. A idade em que se absorve tudo o que está rolando ao seu redor. Não há nada mais interessante para uma criança do que um mundo em revolução cultural. Tem tanto quiproquó que você nem sabe onde colocar sua atenção.
Tendo vivido as duas épocas, é fácil afirmar que a grande diferença entre 1968 e 2024 é a tecnologia. As comunicações por satélite estavam engatinhando. O primeiro telejornal em rede nacional, no Brasil, só surgiria em 1969. As imagens das manifestações mundiais eram registradas em fitas de video e chegavam aqui de avião, alguns dias depois. O único meio de comunicação instantânea era o rádio. Não existia nada que hoje é parte da vida cotidiana: telefones celulares, computadores pessoais, bibliotecas digitais, internet, email, mídias sociais ou qualquer outro mecanismo que desse voz ao cidadão comum. Tudo o que a gente podia fazer era comprar uma revista em banca de jornal, assistir a um fraquíssimo programa jornalístico na TV, comprar discos nas lojas e bater longos papos no buteco da esquina.
Ainda assim, há muito mais similaridade entre 1968 e 2024 do que parece à primeira vista. A revolução social dos anos 60 foi originada por uma juventude inconformada com questões que eles enxergavam como fundamentais a serem combatidas: guerra, preconceito racial, ausência de direitos civis, desigualdade social, repressão sexual, corrupção, excesso de individualismo, unidade familiar patriarcal, sociedade machista e divisão do mundo entre pobres e ricos. Tudo isso somado deu origem a diversos movimentos estudantis ao redor do mundo, que alimentaram movimentos muito mais complexos: black power (pela igualdade racial), women´s lib (pela igualdade entre gêneros), gay power (visibilidade e aceitação homossexual), direitos civis (pela eliminação da segregação racial oficial) e assim por diante
Quem andava pelas ruas em 1968 via mulheres queimando sutiãs e usando minissaias curtíssimas. Em pouco tempo surgiria a primeira parada do orgulho gay, em Nova Iorque. O uso de drogas para expandir a mente e estimular a compreensão e a criatividade tomou conta do mundo artístico e universitário. O amor livre era amplamente discutido e praticado nas rodas mais liberais. O mundo político deu uma guinada para a esquerda, com o predomínio de governos sociais-democratas em toda a Europa, o crescimento do partido democrata nos EUA. Consolidou-se o welfare state: quando o Estado assume um papel assistencial e garante padrões mínimos de educação, saúde, habitação, renda e seguridade social a todos os cidadãos. As igrejas eram vistas como guardiãs de uma moral anacrônica e sem sentido. O predomínio americano no mundo era fortemente questionado. As preocupações com o meio ambiente começavam a pipocar. E, no limite, movimentos de guerrilha urbana em todo o mundo procuravam impor à força sua visão ideológica
Agora olhe o mundo de hoje. As pautas continuam sendo a valorização da mulher, a integração de grupos minoritários, o respeito étnico, a aceitação do universo LGBT+, a preservação do meio ambiente, o combate ao uso da força como elemento geopolítico, a predominância dos EUA, a demanda por um estado mais assistencialista, a redução das desigualdades sociais, a ocupação ilegal de terras e imóveis, o repensar da sexualidade e dos modelos de familia, o debate sobre a sociedade machista e patriarcal, o uso de drogas, as críticas às Igrejas como espaço de manutenção do conservadorismo e a preocupação com o meio ambiente
Qual a diferença entre 1968 e 2024? A tecnologia. Hoje todo mundo pode dar pitaco sobre tudo e não é mais necessário receber passivamente a opinião de um jornalista, professor, artista ou formador de opinião (a palavra antiga para influenciador).
Porém, mais do que isso, quem viveu 1968 sabe que muito do que a rebeldia da época propunha acabava gerando enormes receios nos mais velhos e nas hostes conservadoras da sociedade. Exatamente o que acontece hoje.
“Os padrões morais estão decadentes”, “a mocidade está perdida”, “o futuro do mundo é sombrio”, “os jovens não sabem o que querem”, “os governos são corruptos e incapazes”. Frases repetidas à exaustão em 1968. E em 2024 !!!
Que lições tiramos de 1968? A de que tudo aquilo que foi proposto na época e que realmente significava um avanço, foi incorporado pela sociedade, pela mídia, universidade, famílias e empresas. E tudo aquilo que era exagero, não fazia sentido, não atendia a regras mínimas de bom senso, foi esquecido
Vai acontecer exatamente a mesma coisa mais uma vez. No meio de toda essa gigantesca e variada pauta de temas, demandas e exigências, há coisas que são necessárias. E tem um monte de baboseiras que serão varridas para o ralo da história
Toda a inquietude dos dias de hoje, as guerras em midias sociais, cancelamentos, intolerância com pensamentos diferentes, a rotulação das pessoas, o esforço deliberado em não ver defeitos nas pessoas e abordagens com as quais o indivíduo é simpático, a censura a tudo o que significa contraposição à suas crenças, a polarização política e a surgimento continuo de novas e segmentadas pautas, tudo isso é muito similar ao que já se viu no passado
Quem viveu 1968 sabe que a década de 70 foi morna. As pessoas precisavam absorver e digerir todas as mudanças que os anos 60 provocaram. Não dava para continuar revolucionando as coisas indefinidamente
Felizmente, minha geração vê o desenrolar disso tudo como o remake de um filme conhecido, só que dessa vez feito em 4k e não em preto e branco. Em pouco tempo estaremos entrando em uma nova “década de 70”, morna, suave e relaxante, onde muitas das mudanças pedidas hoje terão sido assimiladas e incorporadas em nossas vidas. E daqui 50 anos teremos uma nova revolução social. É o ciclo das sociedades modernas